Cancro e terapêuticas imunocelulares

Cancro terapêuticas imunocelulares novas com células T CAR

Introdução

As novas terapêuticas de engenharia genética contra o cancro têm cada vez mais efeitos promissores. As células T CAR (Chimeric Antigen Receptor) constituem novas terapêuticas imunocelulares, nas quais células T autólogas ou alogénicas são geneticamente modificadas para expressar um recetor antigénico quimérico anti-CD19. Esta terapêutica é produzida individualmente para cada doente. Na Europa, o tisagenlecleucel está aprovado para o tratamento da leucemia linfoblástica aguda refratária em crianças e adultos jovens, assim como para o linfoma difuso de grandes células B (LDGCB) recidivante/refratário, enquanto que o axicabtagene ciloleucel está aprovado para o tratamento do LDGCB recidivante/refratário de alto grau em doentes adultos e para o linfoma de grandes células B primário do mediastino (LGCBPM). O seu uso foi aprovado após duas ou mais linhas de tratamento sistémico. Ambos os medicamentos são fruto de engenharia genética com células T autólogas que têm como alvo o CD19 localizado nas células malignas.1,2

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Terapêuticas imunocelulares mecanismo de ação

Os medicamentos de imunoterapia com células T autólogas modificadas ligam-se às células que expressam o CD19 (células tumorais e células B normais). Após a interação das células T CAR anti-CD19 com as células alvo que expressam o CD19, os domínios coestimuladores CD28 e CD3-zeta para o axicabtagene e o CD137 para o tisagenlecleucel ativam cascatas de sinalização a jusante que levam à ativação e proliferação de células T, à aquisição de funções efetoras, à secreção de citocinas e quimiocinas inflamatórias. Esta sequência de acontecimentos causa a apoptose e necrose das células alvo com expressão de CD19. Estes produtos diferem na rapidez de expansão e no tempo que persistem no organismo, o que tem a ver com a coestimulação. 2

Processo de produção das células T CAR

O processo de produção das células T CAR começa através da colheita de células mononucleares periféricas através da leucoferese. O produto é transferido, sendo as células T CD3+ separadas, expandidas e ativadas. A transdução génica CAR é realizada nas células T através de um vetor, sendo usado um lentivírus ou um retrovírus. A modificação genética é realizada utilizando um vetor viral derivado de um retrovírus para o axicabtagene ciloleucel e um lentivírus para o tisagenlecleucel que leva um novo gene que codifica para o recetor do antigénico quimérico anti-CD19. As células T CAR são expandidas in vitro e são depois administradas no doente.3

Medicamentos disponíveis

Axicabtagene ciloleucel é um recetor quimérico do antigénio da célula T (T CAR) e está disponível em Portugal desde 18/03/2019 através de um Programa de Acesso Precoce (PAP) com custos, nas seguintes indicações: tratamento de doentes adultos (idade igual ou superior a 18 anos) com LDGCB e LGCBPM, recidivantes ou refratários após duas ou mais linhas de terapêutica sistémica, na população não elegível para transplantação autóloga de medula óssea. A autorização de introdução no mercado do axicabtagene ciloleucel é suportada por dados do ensaio clínico ZUMA-1, em doentes adultos com linfoma não-Hodgkin de células B agressivo recidivante ou refratário. No estudo com um único braço, numa coorte de 101 doentes, 72% dos doentes (n=73/101) que receberam uma única perfusão de axicabtagene ciloleucel responderam à terapêutica, sendo que 51% (n=52/101) obtiveram uma resposta completa (CR). Um ano após a infusão, 60,4% dos doentes estavam vivos e a mediana da sobrevivência global (OS) não tinha sido atingida.2,4,5 

O tisagenlecleucel (nome comercial Kymriah) está disponível em Portugal desde 16/10/2019 através de um PAP ativo com custos, a ser usado nas seguintes indicações: doentes pediátricos e jovens adultos até aos 25 anos de idade com leucemia linfoblástica aguda de células B refratária, em recidiva após transplante ou em segunda recidiva ou posterior, e doentes adultos com LDGCB recidivante ou refratário após duas ou mais linhas de terapêutica sistémica.6

A autorização de introdução no mercado do tisagenlecleucel é suportada por dados do ensaio clínico JULIET, em doentes adultos com linfoma não-Hodgkin de células B agressivo recidivante ou refratário. Neste ensaio foram avaliados 93 doentes, dos quais 52% obtiveram uma taxa de resposta global (ORR). A resposta completa (CR) foi obtida por 40% dos doentes e 12% só conseguiram resposta parcial (PR). Dos doentes com resposta completa, 83% mantinham esta resposta ao fim de 12 meses.3 Em ambos os ensaios, os doentes fizeram quimioterapia linfodepletora (condicionamento pré-tratamento), a qual consistiu em ciclofosfamida 250 mg/m2 e fludarabina 25 mg/m2 durante 3 dias ou bendamustina 90 mg/m2 durante 2 dias.4 Esta linfodepleção permite a redução prévia da carga tumoral, minimizando o risco de rejeição do hospedeiro à perfusão das células T CAR alogénicas. Com o regime de condicionamento pré-tratamento, as células T CAR atingem mais facilmente o pico máximo de proliferação, o que aumenta a sua persistência in vivo, garantindo uma ação antitumoral mais prolongada e, consequentemente, maiores taxas de resposta.7 

A disponibilidade de células T CAR tem de ser confirmada antes de iniciar o regime de depleção linfocitária. Cada saco de perfusão de axicabtagene ciloleucel é específico para um único doente e contém uma dispersão de células T CAR anti-CD19 em, aproximadamente, 68 ml para uma dose alvo de 2 x 106 células T CAR anti-CD19 positivas viáveis/kg de peso corporal (intervalo: 1 x 106 – 2 x 106 células/kg), com um máximo de 2 x 108 células T CAR anti-CD19.8 Cada saco de perfusão contém tisagenlecleucel numa concentração dependente do lote de células T autólogas geneticamente modificadas para expressar um recetor antigénico quimérico anti- -CD19. A composição celular e o número final de células variam entre os lotes de doente individual. Além de células T podem estar presentes células NK. A informação quantitativa sobre as células T CAR positivas viáveis/ml e o total de células no produto encontra-se na documentação específica que acompanha cada lote. Desta forma, poderão ser disponibilizados 1 ou mais sacos de perfusão contendo um total de 1,2 x 106 a 6 x 108 células T CAR positivas viáveis.6 

Estas terapêuticas devem ser iniciadas em centros qualificados por indicação e com a supervisão de um profissional de saúde, médico com experiência no tratamento de doenças neoplásicas hematológicas e com formação na administração e experiência em doentes tratados com este tipo de terapêutica. A autorização de comercialização das células T CAR obriga a cumprir um plano de gestão de risco que inclui estratégias para controlar as reações adversas que se descrevem na informação dos respetivos medicamentos. O uso destas terapêuticas obriga a um registo europeu centralizado dos doentes para monitorizar a segurança e a eficácia a longo prazo.8,9

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Monitorização após administração

A síndrome de libertação de citocinas (SLC) é uma reação potencialmente fatal que se traduz numa resposta inflamatória sistémica através da libertação de citocinas pró-inflamatórias como a IL-1, IL-2, IL-6, TNF alfa, IFN gama, GM-CSF, MCP-1 e MIP-1 beta. A frequência e severidade da SLC estão relacionadas com a ativação e expansão dos linfócitos T. Este tipo de reação é variável no tempo, pode começar nas primeiras 24 horas após a infusão das células T CAR ou pode ser retardada. Os sintomas iniciais desta síndrome são febre, taquicardia, podendo progredir para hipotensão, hipoxia e disfunção multiorgânica.3 Para combater este efeito adverso é usado o tocilizumab, um anticorpo monoclonal recombinante para o recetor IL-6. Os doentes com SLC severa respondem com uma a duas doses de tocilizumab. Os centros hospitalares onde se fazem tratamentos com células T CAR devem ter disponíveis pelo menos duas doses de tocilizumab por doente antes da perfusão. Recomenda-se o seu uso a partir do grau 2 de SLC.10 

No estudo ZUMA-1, apesar de quase todos os doentes terem desenvolvido SLC de qualquer grau (94/101), o efeito adverso mais comum foi a pirexia severa (77/101) e o grau 3 ou superior da SLC foi observado em 11% (12/108) dos doentes.11 O tempo mediano para o início de SLC foi de 2 dias (intervalo de 1 a 12 dias) e a duração mediana foi de 7 dias, com um intervalo de 2 a 29 dias. O tempo mediano para o início das reações adversas neurológicas foi de 5 dias (intervalo de 1 a 17 dias) e a duração mediana foi de 13 dias (intervalo de 1 a 191 dias). Cerca de 98% de todos os doentes recuperaram da SLC e/ou das reações adversas neurológicas.11 

No estudo JULIET, a SLC foi observada em 58% (64/111) e os efeitos neurológicos em 21% (23/111) dos doentes.11 A compreensão da severidade da SLC e dos efeitos neurológicos ao longo do tempo é muito útil para compreender o desenrolar clínico destes eventos.11 O doente poderá ter alta hospitalar após os primeiros dez dias, contudo aconselha-se que o doente resida num alojamento a menos de 2 horas do centro nos primeiros 28 dias desde a perfusão. Estes efeitos adversos são na sua generalidade manejáveis e reversíveis com as adequadas estratégias de tratamento.

O farmacêutico hospitalar na gestão das células T CAR

Por se tratar de medicamentos de uso exclusivo hospitalar, os farmacêuticos hospitalares têm a responsabilidade de contribuir para o uso racional dos mesmos, assumindo a responsabilidade técnica da aquisição, receção, armazenamento, conservação e dispensa, assim como estabelecer um sistema eficaz e seguro que garanta uma correta administração ao doente.10 Deverá ser elaborado um procedimento normalizado de trabalho do processo de gestão dos medicamentos contendo células T CAR. No processo de seleção, deve ser analisada a informação clínica do doente, a submissão e autorização da Comissão de Farmácia e Terapêutica (CFT) local, bem como a submissão ao Infarmed (Plataforma SIATS). No momento da aquisição, o farmacêutico deve garantir e assumir a responsabilidade técnica da aquisição dos medicamentos contendo células T CAR, sendo o objetivo principal assegurar a disponibilidade destes para o tratamento dos doentes. O medicamento é derivado de um procedimento de aférese, um processo clínico que geralmente se realiza no Serviço de Hematologia ou de Terapia Celular, diferente da obtenção de medicamentos convencionais. A receção deve estar adaptada às condições específicas para medicamentos contendo células T CAR. São necessárias condições adequadas de conservação e transporte para o axicabtagene (-150°C) e para o tisagenlecleucel (-120°C) em contentor criogénico contendo azoto gasoso com a respetiva monitorização, bem como a verificação da integridade do medicamento, rotulagem e certificado de análise.6,8 Na conservação deverá existir um sistema de monitorização contínuo da temperatura. No ato da dispensa deverá ser realizada dupla verificação do nome do doente e do medicamento, registo da hora de retirada do medicamento do tanque de azoto e coordenação da descongelação com o momento da perfusão. A administração é da responsabilidade do pessoal de enfermagem.

Conclusão

Terapêuticas de engenharia genética como as células T CAR representam um potencial para a mudança de paradigma no tratamento de doentes com cancro. A complexidade de lidar com medicamentos geneticamente modificados e considerados “vivos“ é um desafio para os investigadores, para os operadores logísticos, para as entidades reguladoras e para os pagadores, sejam eles públicos ou privados. O objetivo é ajudar os doentes em diversas patologias oncológicas a beneficiar desta nova era de terapêutica imunocelular personalizada. A informação e formação das equipas multidisciplinares, doentes e cuidadores relativamente aos efeitos secundários desta terapêutica é muito importante para a deteção e intervenção precoce nos mesmos.10

Referências bibliográficas

1. Yakoub-Agha I, Chabannon C, Bader P, et al. Management of adults and children undergoing chimeric antigen receptor T-cell therapy: best practice recommendations of the European Society for Blood and Marrow Transplantation (EBMT) and the Joint Accreditation Committee of ISCT and EBMT (JACIE). Haematologica. 2020;105(2):297-316. doi:10.3324/haematol.2019.229781 

2.Mohty M, et al. CAR T-cell therapy for the management of refractory/relapsed high-grade B-cell lymphoma: a practical overview. Bone Marrow Transplant. 2020 Apr 18. doi: 10.1038/s41409-020-0892-7. 

3. Chavez JC, Bachmeier C, Kharfan-Dabaja MA. CAR T-cell therapy for B-cell lymphomas: clinical trial results of available products. Ther Adv Hematol. 2019;10:2040620719841581. 

4. Frigault MJ, Maus MV. State of the art in CAR T cell therapy for CD19+ B cell malignancies. J Clin Invest. 2020 Apr 1;130(4):1586-1594. doi: 10.1172/JCI129208. 

5. Chavez JC, Locke FL. CAR T cell therapy for B-cell lymphomas. Best Pract Res Clin Haematol. 2018;31(2):135-146. doi:10.1016/j.beha.2018.04.001 

6. Resumo das Características do Medicamento Kymriah®. 23/08/18. [Acedido a: 23/09/2020]. Disponível em: https://www.ema.europa.eu/en/documents/product-information/kymriah-epar-product-information_pt.pdf 

7. Gust J, Hay KA, Hanafi LA, Li D, Myerson D, Gonzalez-Cuyar LF, et al. Endothelial Activation and Blood-Brain Barrier Disruption in Neurotoxicity after Adoptive Immunotherapy with CD19 CAR-T Cells. Cancer Discov. 2017;7(12):1404-1419. doi: 10.1158/2159-8290.CD-17-0698. 

8. Resumo das Características do Medicamento Yescarta®. 23/08/18. [Acedido a: 24/09/2020]. Disponível em: https://www.ema.europa.eu/en/documents/product-information/Yescarta-epar-product-information_pt.pdf 

9. Wall DA, Krueger J. Chimeric antigen receptor T cell therapy comes to clinical practice. Curr Oncol. 2020 Apr;27(Suppl 2):S115-S123. doi: 10.3747/co.27.5283. 

10. Alonso Herreros JM, Calleja Hernández MA, Carreras Soler MJ, Cordero Cruz AM, García Pellicer J, Lizeaga Cundin G, et al. Procedimiento de gestión de medicamentos CAR-T. Madrid: Sociedad Española de Farmacia Hospitalaria; 2019. [acedido a 24/08/2020] Disponível em: https://gruposdetrabajo.sefh.es/gedefo/images/stories/documentos/2019/PROCEDIMIENTO_DE_GESTIN_DE_MEDICAMENTOS_CAR-T.pdf 

11. Locke FL, Go WY, Neelapu SS. Development and Use of the Anti-CD19 Chimeric Antigen Receptor T-Cell Therapy Axicabtagene Ciloleucel in Large B-Cell Lymphoma: A Review. JAMA Oncol. 2020 Feb 1;6(2):281-290. doi: 10.1001/jamaoncol.2019.3869. PMID: 31697310

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